Eu
sei que não recebes uma carta minha há uns dias e por isso desculpa-me. A
verdade é que te escrevi duas, mas achei que poderias ficar com uma ideia errada
daquilo que tenho para te dizer. Estive muito zangada e muito triste mas agora
com mais calma e com a cabeça e o coração arrumados, escrevo-te de novo.
Estes
últimos dias foram difíceis e dolorosos. Precisei de espaço e tempo para
mastigar, engolir e digerir aquilo que os meus olhos devoram, não consigo
acompanhar a velocidade.Aquela noite… Assustadora e violenta.
Era a meia noite de Domingo, dia 17, estávamos prontas para começar o turno. Por volta da 1h, a reunião estava a começar: resumo do dia; noticias sobre as fronteiras, o tempo e os Ferrys; distribuir tarefas e começar. Éramos 8.
A tempestade chegou sem dizer nada a ninguém, por esta razão, os barcos não chegaram no sábado. Os traficantes começam a ter noções básicas de perigo. Mória estava calmo porque a maioria dos refugiados estavam no Porto à espera do Ferry para Atenas.
Fui para o Porto. O nosso carro foi abastecido com águas e
laranjas. A Mariana e eu chegámos. Chegámos aquilo que
parecia ser um pavilhão abandonado de um filme de terror: janelas partidas e os vidros no chão, buracos no teto por onde entrava a chuva, cheiro a lixo porque o lixo era
todo o chão e os refugiados dormiam camuflados algures num buraco. Éramos duas
para 500.
As horas em tempo devagar, passaram.
São agora 5h da manhã. O Ferry deveria partir às 6h mas o tempo está cada vez pior. Começam a chegar mais e mais refugiados. A Mariana e eu a explicar a situação vezes e vezes sem conta “o ferry não vai sair por causa da tempestade”, uns compreenderam, outros nem tanto.
As perguntas são infinitas, enquanto todos juntos tomamos um banho de chuva mas não queremos saber, eles precisam de continuar o caminho, têm medo que as fronteiras fecham. Eu gritava “Algum tradutor por aqui?”, aparece sempre algum salvador da comunicação.
A confusão foi a Rainha e mau tempo o Rei. Estiveram de mão dada toda a noite.
Voei, mesmo mat. Veio um senhor, que pegou em mim e levou-me pelo braço até às paredes do pavilhão.
Não tínhamos nada para dar. Cobertores, roupa seca, leite para os bebes e comida. Aquilo que tínhamos no carro não chegava para todos, decidimos esperar pela equipa. Ligámos ao coordenador “precisamos de mais pessoas aqui, precisamos de comida e impermeáveis”.
Enquanto isto, a Zuhour, uma Síria pegou-me nas mãos e pô-las debaixo da sua camisola, não tinha tempo para aquilo. Tantas coisas para fazer: explicar a situação, ver se alguém precisa de um médico, agarrar pontas soltas, enfim logística. Tirei as mãos, “não”, agarrou-me e disse ”vais ficar doente, primeiro aquece-te”.
Ás 6h e pouco chegou o resto da equipa com comida. Fiquei na fruta, foi doloroso, foi uma selva. Pessoas com fome e eu a dizer que não. “Só mais uma banana, tenho uma família, a minha mulher está grávida”, “não posso dar mais”. E não, e não, e não quase sempre.
Eram 7h e a logística para mim acabou, o coordenador já cá estava. Fui brincar com as crianças. A Mariana e eu distribuímos os brinquedos que tínhamos comprado. Pela primeira vez, crianças a rir e a brincar, elas esquecem-se que as crianças brincam.
Eram 8h eu estava a ficar cansada.
Uma mulher estava a chorar encostada a uma parede e tinha os dois filhos pequenos a brincar à sua frente. “As-salam, posso sentar-me?” Agarrei a mão da mulher, ela não falava inglês e eu não falava árabe mas as duas falávamos. Dei-lhe umas bolachas e um abraço forte. “As-salam alaykom”.
A fazer uma das voltas pelo pavilhão do terror, passei por este homem demasiadas vezes, sentado no chão, agarrado aos joelhos e com o olhar fixo. “As-salam, posso fazer alguma coisa por si?”, levantou a cabeça “não, obrigado”. Tenho pensado nestes homens que estão sózinhos, como se não fosse por si só uma viagem difícil, são os últimos em tudo, quando calha nem há para eles.
São
9h o turno está quase a acabar! Não aconteceu desta maneira... Eram 10h não havia voluntários
do turno seguinte e os da noite foram embora mas a Mariana, a Phoebe e eu
ficámos até que alguém aparecesse. Chegámos a casa depois das 11h , e fomos
dormir.
Acordámos de noite, não conseguíamos acreditar naquilo que tinha acontecido. A única das milhares de organizações existentes na ilha que se preocupou com os refugiados para além dos Better Days for Mória, foram os Médicos sem Fronteiras. A ACNUR passou pelo pavilhão com três camionetas, mas com certeza achou, que estava tudo controlado e foi embora…
Sabes
Mat, sei que aquilo que te escrevo, é simples demais para a verdade da
realidade. Não sei fazer melhor, acho que as palavras que são precisas ainda
não foram escritas por ninguém.
Quando te digo que estas pessoas chegam geladas, chegam não só com frio mas molhadas, descalças, e a tremer. Chegam sem cor.
Quando te digo que as crianças não brincam é porque depois de tudo o que passa, não tenho certeza de serem crianças ainda.
Quando te digo que aqui chegam com esperança, é porque estão há dois anos a juntar dinheiro para trazer a família, vêm por traficantes que os trataram mal, apontam pistolas, e não lhes dão de comer.
Quando te digo que estas pessoas sofrem, não compreendes a dimensão da palavra porque passas a sofrer tu também com a crueldade do mundo. O coração fica apertado.
Ficas sem respirar.
Eu
nem desconfio das vidas dos refugiados, da bagagem que carregam, mas sei que
são tão humanos como eu e sentem da mesma maneira que eu sinto. Tenho esperança
que o sonho de viverem em paz não lhes seja destruído por nós. Por mais ou
menos interesses económicos que tragam, não podemos permitir que a vida lhes seja roubada por estarem no sítio errado à hora errada.
Um beijinho grande,
Matilde
As horas em tempo devagar, passaram.
São agora 5h da manhã. O Ferry deveria partir às 6h mas o tempo está cada vez pior. Começam a chegar mais e mais refugiados. A Mariana e eu a explicar a situação vezes e vezes sem conta “o ferry não vai sair por causa da tempestade”, uns compreenderam, outros nem tanto.
As perguntas são infinitas, enquanto todos juntos tomamos um banho de chuva mas não queremos saber, eles precisam de continuar o caminho, têm medo que as fronteiras fecham. Eu gritava “Algum tradutor por aqui?”, aparece sempre algum salvador da comunicação.
A confusão foi a Rainha e mau tempo o Rei. Estiveram de mão dada toda a noite.
Voei, mesmo mat. Veio um senhor, que pegou em mim e levou-me pelo braço até às paredes do pavilhão.
Não tínhamos nada para dar. Cobertores, roupa seca, leite para os bebes e comida. Aquilo que tínhamos no carro não chegava para todos, decidimos esperar pela equipa. Ligámos ao coordenador “precisamos de mais pessoas aqui, precisamos de comida e impermeáveis”.
Enquanto isto, a Zuhour, uma Síria pegou-me nas mãos e pô-las debaixo da sua camisola, não tinha tempo para aquilo. Tantas coisas para fazer: explicar a situação, ver se alguém precisa de um médico, agarrar pontas soltas, enfim logística. Tirei as mãos, “não”, agarrou-me e disse ”vais ficar doente, primeiro aquece-te”.
Ás 6h e pouco chegou o resto da equipa com comida. Fiquei na fruta, foi doloroso, foi uma selva. Pessoas com fome e eu a dizer que não. “Só mais uma banana, tenho uma família, a minha mulher está grávida”, “não posso dar mais”. E não, e não, e não quase sempre.
Eram 7h e a logística para mim acabou, o coordenador já cá estava. Fui brincar com as crianças. A Mariana e eu distribuímos os brinquedos que tínhamos comprado. Pela primeira vez, crianças a rir e a brincar, elas esquecem-se que as crianças brincam.
Eram 8h eu estava a ficar cansada.
Uma mulher estava a chorar encostada a uma parede e tinha os dois filhos pequenos a brincar à sua frente. “As-salam, posso sentar-me?” Agarrei a mão da mulher, ela não falava inglês e eu não falava árabe mas as duas falávamos. Dei-lhe umas bolachas e um abraço forte. “As-salam alaykom”.
A fazer uma das voltas pelo pavilhão do terror, passei por este homem demasiadas vezes, sentado no chão, agarrado aos joelhos e com o olhar fixo. “As-salam, posso fazer alguma coisa por si?”, levantou a cabeça “não, obrigado”. Tenho pensado nestes homens que estão sózinhos, como se não fosse por si só uma viagem difícil, são os últimos em tudo, quando calha nem há para eles.
Acordámos de noite, não conseguíamos acreditar naquilo que tinha acontecido. A única das milhares de organizações existentes na ilha que se preocupou com os refugiados para além dos Better Days for Mória, foram os Médicos sem Fronteiras. A ACNUR passou pelo pavilhão com três camionetas, mas com certeza achou, que estava tudo controlado e foi embora…
Quando te digo que estas pessoas chegam geladas, chegam não só com frio mas molhadas, descalças, e a tremer. Chegam sem cor.
Quando te digo que as crianças não brincam é porque depois de tudo o que passa, não tenho certeza de serem crianças ainda.
Quando te digo que aqui chegam com esperança, é porque estão há dois anos a juntar dinheiro para trazer a família, vêm por traficantes que os trataram mal, apontam pistolas, e não lhes dão de comer.
Quando te digo que estas pessoas sofrem, não compreendes a dimensão da palavra porque passas a sofrer tu também com a crueldade do mundo. O coração fica apertado.
Ficas sem respirar.
Um beijinho grande,
Matilde