domingo, 23 de novembro de 2014

Carta a um pai

Querido Pai,

Hoje fazia e faz 50 anos. Por todos os dias que foram vividos e por todos aqueles que vivemos por si, muitos parabéns!

‘Se calhar não morremos enquanto alguém sentir por nós’- Uma vez li esta frase num livro e desde ai tem sido muito claro para mim não deixar esquecer o meu pai, pelo menos no meu coração.

Quando penso no cancro e na doença horrível que foi, nos tratamentos difíceis de suportar e na cura que não chegou, lembro-me de sentir que o pai nunca morreria até que morreu e eu não senti nada. Nada. Só um vazio frio e escuro. Durante algum tempo até acho que nem estive cá, achei que o silêncio apagava tudo… Olho para trás e percebo que era a dor de perder um pai dentro de mim, mas este é o problema da dor: ela exige ser sentida! E eu, tive de perceber que o meu pai já não sofria da existência enquanto pessoa mas eu, pelo contrário, sofria enquanto pessoa sem a existência de um pai sem cancro.

Passaram-se uns tempos e eu apercebi-me que tinha a alma afogada em areia, quase sufocada e foi ai que escolhi chorar. Acho que o pai percebeu a minha ideia e discretamente passou a ser além de pai, professor de lágrimas: deixa-me chorar quando preciso, diz-me quando não posso mas mais importante, ensinou-me que o sorriso é das melhores coisas no mundo- é fácil sorrir- e melhor ainda, é aquilo que de mais barato podemos dar aos outros, por isso, não há desculpas, há sorrisos! Nestas alturas em que o Sr. Prof. me permite umas lágrimas, eu choro: choro porque preciso de si, porque tenho saudades suas, porque é difícil viver sem pai, porque os meus irmãos crescem sem si, porque a vida devia ser vivida ao lado de um pai e porque nada posso fazer, choro. Eu acho que sou alegre, contudo sei chorar e isso acho que me permite ser eu, não é proibido chorar e não faz de mim mais fraca pelo contrário, faz de mim a Matilde que chora porque precisa de lavar a alma porque os anos passam mas a dor não, a dor é pesada e faz caminho comigo. Claro que se vive com ela e BEM, mas ela não deixa de existir porque o meu pai também não há-de voltar.

Às vezes penso que é tão difícil ser sua filha sem o pai aqui… Eu sei que é chato mas é verdade! É que o pai e o seu nome viveram tantas coisas juntos e tantas coisas com tantas pessoas, que é tantas vezes lembrado! E eu, que não sou o pai, que me chamo Matilde mas que também tenho o seu nome, Salema, e que também vivi muitas coisas com o meu nome, sou só a sua filha, mas muito contente por isso! Com isto, quero explicar-lhe que me é difícil ser como o pai, porque as pessoas gostavam de si por aquilo que era, pela preocupação constante e pelo olhar verdadeiramente para com outro.

Não acredito em heróis, não acho que o pai tenha sido um herói, acho sim que o pai viveu a sua vida com a vida que a vida lhe deu e desta maneira foi um exemplo para mim: dois cancros, inúmeros tratamentos, várias operações e muitos dias difíceis. Lembro-me de lhe perguntar como o pai estava e a resposta era: ‘não tou bem mas há vidas piores’, e hoje, quando penso no porquê desta minha vontade maior que todas as outras em querer ser enfermeira, é por causa destas vidas- todas as vidas. Eu não sei explicar o que é a vida mas sei que o pai se agarrou a ela enquanto pode e isto é porque a vida é especial, só pode e não tenho dúvidas.

Acredito e faz-me sentido que a vida só pode ser vivida pelo amor aos outros, e os outros são quem conheço e quem não conheço, todos aqueles com quem um dia ainda me vou cruzar. Para mim, a vida tem sentido, eu acho que toda a gente merece uma parte de nós, qualquer parte, todas as pessoas, qualquer pessoa!

É importante dizer-lhe pai, que vivo bem e aceito tudo quilo que aconteceu, eu sou feliz  e costumo dizer que, eu sou assim, a Matilde que todos conhecem porque o meu pai morreu, por mais horrível que isto pareça, foi a força da circunstância, eu cresci muito, aprendi muito e sou aquilo que quero ser ou ainda a caminho disso. A verdade é que os anos passam e a vida anda, e muitas vezes é assustador quando descubro, em pânico, que não me consigo lembrar da sua cara. São estes os momentos mais difíceis de não se ter pai. É nestas alturas, em que estou assustada que me perguntam o que se passa e eu nada digo mas, dentro de mim o pai grita-lhes: 'DE MIM ELA PRECISA DE MIM'.

Querido pai, dizer-lhe mais uma coisa. Não fique triste, não herdei o seu carinho nem o gosto pela cozinha, pelos pratos e pelos sabores, acho que sou até um bocado esquisita é pouco aventureira mas por batatas fritas sou maluca... Contudo herdei a sua paixão pelas pessoas, por fazer os outros felizes e pelas pequenas coisas. A vida é boa pai! E por isso, esta é a minha primeira carta, mas muitas mais virão porque aquilo que eu mais gosto neste mundo são as pessoas e é assim que eu quero ser feliz!

Sei também que o pai costuma vir ver-me e por isso muito obrigada, sei também que a dor é inevitável na vida e por isso, obrigada por passá-la comigo!

Um beijinho, da filha que o adora e que tem muito orgulho em si!
Matilde


P.S. 'Haja o que houver eu estou aqui!'